Um programa para reeducar os músicosChegou o dia do recital. O músico prepara-se para exibir uma
performance impecável. O melhor da sua forma, depois de dias e dias de ensaio,
às vezes até poucas horas antes da apresentação. É quando - não raro - se
instala a chamada Síndrome de Palco e mãos suadas e trêmulas, pulsação alterada
e respiração ofegante podem colocar por terra dedicação e expectativas. Podem
abalar até a reputação do artista. Os movimentos estudados e repetidos, em nome
da técnica, da estética e da interpretação, simplesmente travam.
Na última
semana o médico e violonista, Djalma Marques, esteve em Pelotas. Em palestras,
oficinas e consultas, como faz em vários países do mundo, o pernambucano
procurou disseminar o ensinamento que não vale apenas para os profissionais das
artes: é preciso controlar a tensão muscular diária e executar mesmo tarefas
simples, como atender o telefone, dirigir e escrever com menos contração. O
resultado? Muitos casos de Lesões por Esforço Repetitivo (LER), ou melhor, de
Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (Dort) serão evitados.
É
hora então de voltar ao palco. Afinal, Djalma Marques é especialista em Medicina
da Arte, área a que os brasileiros ainda não se atentaram. Se estiver relaxado -
alerta o doutor - o instrumentista obterá justamente os efeitos positivos que
busca: sonoridade de melhor qualidade e ganho em velocidade, quando a peça
interpretada pede dinamismo. O ideal para barrar a Síndrome de Palco, garante
Marques, seria vivenciar o clima do show, antes de estar diante da platéia. Ir
até o local do recital, no horário marcado, com a roupa que irá vestir e tocar
ao menos parte do repertório, é uma boa estratégia. “Evita o choque, o
estranhamento.”
Se a rotina - que muitas vezes inclui outra carreira em
paralelo à vida de músico - não permite a simulação, não existe problema algum.
Voltar as atenções ao espetáculo, quase na hora de subir ao palco, meio de
supetão, pode ser bom. O dia da apresentação não foi mesmo feito a ensaios. “Se
a música ainda requer estudo, é sinal de que não está pronta para ser
apresentada”, enfatiza o médico-instrumentista. É bom ficar de fora do set-list,
em favor do equilíbrio emocional do artista. É todo um processo, que começa bem
antes de o recital estar agendado.
Sem prazer, é melhor
parar“Se não é gostoso, pare”, sintetiza Djalma Marques, ao bater um
papo descontraído com o Diário Popular, no Conservatório de Música da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde ocorreu o curso. “A música é como
uma brincadeira, tem que ser um processo lúdico, de desfrute, como a
vida.”
Claro que, além de talento, requer dedicação e disciplina. E isso é
bom. Não deve, no entanto, se transformar em alimento para culpas e sofrimentos,
inclusive físicos, devido às más posturas ou aos excessos em longas sessões de
estudo. Para praticar, não é necessário estar com o instrumento em mãos -
defende. O músico é um ser mental. Portanto, basta voltar o raciocínio a
escalas, movimentos, passagens e interpretações e estará se aprimorando. “O
instrumento é uma extensão do nosso corpo, não é uma expressão dissociada.”
A trajetória do especialista
O pernambucano de 56 anos nasceu em Afogados
da Ingazeira, interior do Estado. Como médico, primeiro atuou como gastro, até
que o Djalma Marques, versão violonista, precisou de tratamento. Foi quando o
Marques - médico - parou e atentou-se para falta de conhecimento brasileiro no
setor da Medicina da Arte. Partiu então ao doutorado em Barcelona, na Espanha,
referência mundial no assunto.
Ao longo de quatro anos acompanhou 40
violonistas, que chegaram a ganhar o apelido de “homens de borracha”, ao
colocarem em prática a tese de tensão mínima. O médico-compositor, autor de
quatro CDs de violão clássico, tornava-se o criador do Programa de Reeducação
Psicomotora para Músicos. O PRPM foi inclusive aplicado com menores de 11 a 15
anos de idade, internos de um presídio na Ucrânia e considerados de alta
periculosidade, e já deu resultados: os adolescentes estão mais calmos.
“Não
há nada de altas tecnologias no meu trabalho, muito do que coloco em prática,
observei no movimento das crianças e dos gatos”, descontrai. “As coisas são
simples, o homem é que se isolou da natureza”, ensina o doutor. “É preciso
aprender com o universo.”
O caminho é a prevenção
Em busca da
tensão diária mínima, a respiração é essencial. Quanto mais oxigênio, menos
oxidação celular.
1)A alimentação também entra na lista de orientações que o
violonista repassa aos instrumentistas mundo afora. O leite, não absorvido pelo
organismo, pode levar à formação de artrites e artroses, que travam as
articulações. “O homem é o único animal adulto a beber leite e, ainda por cima,
de outra espécie”, enfatiza. “O leite que consumimos é incompatível com o
organismo humano, pois é produzido para o desenvolvimento de um boi, por isso
não há como ser totalmente absorvido.” Livre do consumo de todas as carnes,
Djalma Marques diz que busca suprir a proteína e o cálcio (do leite) ao ingerir
vegetais, assim como fazem os cavalos - compara. O café também está na lista das
bebidas que deveriam sair do cardápio dos músicos, ao menos no dia dos
espetáculos. Como excitante, promove estímulos nervosos. “E, na hora da
execução, é preciso estar atento, mas relaxado para dar o bote certo.”
2)Os
problemas que mais acometem os músicos são a tendinite, a tenossinovite e a
distonia focal (que é uma incoordenação motora involuntária, de tratamento
complicado). O alongamento é uma boa ferramenta preventiva, mas não é preciso
esperar um momento formal para fazê-lo. Até durante o trabalho - em rápidas
paradas - ou na fila do banco, por exemplo, é possível se esticar um pouquinho.
No máximo, você receberá olhares desconfiados.
3) O segredo é manter a mente
sobre controle. Em geral, as tensões que enrijecem pescoço, ombros e geram dores
na coluna têm origem na mente. O contrário também pode ocorrer. Uma pessoa que
está com dor de dente, por exemplo, deverá ter alterações de humor. Mas o
caminho mais comum são as tensões partirem da mente.
4) Soltar as articulações
também faz parte desse conjunto de medidas a serem adotadas no dia-a-dia e não
apenas quando um compromisso exige que o profissional esteja relaxado.
-
O
especialista ainda indica que os instrumentistas fortaleçam a musculatura.
Sessões diárias de levantamento de peso, por meia-hora, em casa mesmo, pode dar
resultado. “É importante que os membros estejam soltos, mas com que tenham
força, para o instrumentista tocar com garra.”Funcionamento
integrado
A fisioterapeuta Cristina Rocha de Barcellos tem se dedicado a
estudar a distonia focal, para a qual não há explicações fechadas. No Brasil,
não existem sequer dados de incidência e prevalência. “Pela bibliografia, o que
se sabe é que em geral a patologia se manifesta quando o instrumentista está no
ápice da execução.” Envergonhados e com pouca informação da distonia, a maioria
dos músicos confunde os sinais com estresse, cansaço e contratura muscular. Um
dedo, a mão ou o membro simplesmente não obedecem o comando que sempre foi dado
e respeitado. Movimentos involuntários incoordenados prevalecem e o artista
perde o controle.
O cérebro, no entanto, é muito perfeito. Bastará o
instrumentista descobrir um novo reposicionamento das mãos - com o menor
prejuízo possível à execução - e uma outra via de condução nervosa será adotada.
É a plasticidade cerebral, que permitirá que outras zonas íntegras, no entorno
da lesão, sejam acionadas. É um processo longo e complicado. É como começar do
zero, depois de já ter atingido um patamar respeitável.
“E é um trabalho
individual, que dependerá da morfologia de cada um.” Movimentos de soltura, com
o balanceio dos braços em todas as amplitudes, ajudarão a evitar problemas mais
comuns como as tendinites - lembra a adepta dos ensinamentos de Djalma
Marques.
Trazer o violão para mais perto do corpo também é uma boa dica, para
o relaxamento dos membros. Trabalhar com o punho reto - num ângulo que não
comprima o nervo mediano - pode prevenir a chamada síndrome do túnel do carpo.
Em breve, uma nova atividade será realizada no Conservatório de Música para que,
em parceria com o violonista Daniel Medeiros, a fisioterapeuta possa trocar
experiências, repassar informações e tirar dúvidas de outros instrumentistas.
“Me preocupo principalmente com este pessoal que toca em casa, sem orientação”,
afirma. Estudar violão está inclusive nos planos de Cristina, para entender com
mais facilidade os mecanismos de proteção a serem ensinados aos pacientes.
A
primeira lição está dada: o corpo deve ser visto como algo integrado. Não são
membros e órgãos separados e independentes.
(Fonte: Michele Ferreira
http://srv-net.diariopopular.com.br/10_09_08/vivabemcentral.html)